Com a palavra,Dr. Mauro Fisberg
Todos precisamos de uma referência na vida, e muitas delas são derivadas da memória e das
recordações do passado e de suas marcas no nosso desenvolvimento. Os sonhos fazem parte
de tudo isto e hoje ao acordar de um pesadelo, o texto foi se formando na minha cabeça, e
senti que precisava registrar isto de alguma forma, antes de que se perdesse na bruma das
minhas memórias desencontradas, e como uma forma de homenagem a toda uma turma de
pessoas que estão presentes, que se foram e que de alguma forma também fazem parte do
registro evocativo de toda uma geração.
Apesar de nascido em Santos, toda a minha infância foi vivida no bairro de Pinheiros, classe
média de São Paulo, quando ainda existia uma classe média, e quando este bairro era
simplesmente um bairro residencial, pacato, provinciano, e que por coincidência albergava a
escola primária em que estudei, o colégio israelita brasileiro Chaim Nachman Bialik. Numa rua
hoje malucamente e alucinadamente cheia de carros, numa pequena casinha, na esquina da
rua Fradique Coutinho, hoje parte da Vila Madalena e não mais de Pinheiros, reduto de bares e
baladas, estava a minha escola. E todos conhecíamos os professores por nome, os diretores de
português, hebraico e ídiche, a ancestral língua de nossos antepassados judeus, corruptela do
alemão mesclado com modernismos e heranças de mil línguas pátrias por onde passaram
nossos antigos, que faz com que todos os judeus antigos se entendam e ao mesmo tempo não
entendam nada...
Diferentemente de tempos atuais, nós conhecíamos nossos colegas de classe por nome e
sobrenome, e sim, conhecíamos todos os pais ou quase todos os pais de nossos amigos. Sim,
éramos um grupo de amigos, que tinham pais amigos ou conhecidos. A nossa vida social
gravitava em torno da escola, e nossa atividade de tardes ou férias, era visitar nossos amigos
em busca de alguma coisa para fazer. E como não podíamos ver televisão ( TV para os
modernos ), em que a Sessão da Tarde ou National Kid era a nossa visão de um sonho
proibido, andávamos quilômetros ou metros, para a casa de nossos amigos e quase vizinhos.
E nos finais de semana, especialmente aos sábados e nas férias, juntavam-se os amigos, primos
e os visitantes de nossos amigos, para jogar futebol na garagem dos fundos da casa de meus
avós e primos ( moravam em um mesmo predinho da rua Antonio Bicudo ), ou jogávamos taco
no meio da rua, ou queimada quando as meninas que não jogavam futebol eram em número
maior do que as que não gostavam. E as nossas festas de aniversário não eram em buffets e
sim nas nossas casas, com a criatividade que nossos pais, a enorme maioria deles,
comerciantes, lutavam para desenvolver, quase sempre acompanhados de cachorro quente,
pipoca, e suco em pó diluído. E tínhamos atividades constantes, com jogos, recreação,
gincanas, jogos de memória ou adivinhação, e muito jogo de peteca com bexigas, que no meu
tempo se chamavam de balão... E não confundam com os balões de enviar aos céus, que já
sabíamos que causavam desgraça, mas que eram a loucura de todos nós, correndo atrás deles
quando caiam por todos os locais.
Em finais de semana, a turma ia ao Ibirapuera, e os pais e meninos, montavam as traves de
metal em um dos enormes espaços do parque, e jogávamos com bola de capotão, que um de
nós tínhamos ganho em algum dos aniversários. E os pais se mesclavam aos filhos e
ensinavam disciplina.
Nas férias maiores, um grande grupo de nossos amigos, seguindo a escolha de nossos pais,
íamos a uma estância climática longínqua, São Pedro (ou aguas de São Pedro como dizem
hoje), Lindóia, Serra Negra e mais tarde Praia Grande.
Ficávamos geralmente um mês inteiro com nossas mães e nos finais de semana, de ônibus ou
de carro, chegavam nossos pais para agitar a cidade inteira, com o futebol hóspedes x garçons
no estádio da cidade, ou para organizar gincanas de caça ao tesouro em toda a cidade. Nas
manhãs quentes ou frias, acordávamos com o tropel dos cavalos que chegavam das fazendas,
fazendo barulho com seus cascos na rua em frente a nossas janelas, e sabíamos que tínhamos
de acordar, para ir a piscina de um hotel maior, a piscina pública e os que tinham mais dinheiro
no seu próprio hotel. Depois do almoço, após dormir (obrigatoriamente), podíamos andar a
cavalo ou se a mãe ou irmãos pequenos estivessem junto, de charrete, em que nosso sonho
era guia-las.
As noites eram feitas de saraus de música nos porões do Grande Hotel ou Hotel Avenida, ou
nos inúmeros hotéis de Lindóia, em que cada um de nós se distribuía de acordo com a renda,
que nunca nos separava...
E como não lembrar das festas que nossos pais faziam em nossas casas, preparadas com
semanas de antecipação, com fantasias, jogos, com luzes feitas por meu pai, num quintal que
magicamente se transformava de nosso quarto de jogos para um salão de baile de adultos. E
como não lembrar de que os pais de todos eles eram tios. Todos iguais, todos conhecidos e
substitutos imediatos de nossos pais. Assim, os pares ou simples, um casal, pais de um de
meus melhores amigos, que um dia uma arvore os jogou aos céus, caída no meio de uma
tempestade e no meio de uma estrada); um segundo casal, pais de um amigo que um dia se foi
sozinho, triste e incompreendido, e da menina, hoje avo fanática, musa de minha infância. E os
que se foram jovens como o pai do Picles, e sua mãe heróica, que sem nunca ter trabalhado,
assumiu a loja e a educação de seus filhos. E os nossos tios e primos eram copia de nossa
situação. Os filhos de meu tio que jogava um jogo confuso que conhecíamos como bridge, uma
ponte para o desconhecido, eram meus irmãos, brigando e amando a cada momento.
Meus irmãos eram minha defesa na hora de dormir, com nossos rituais de adormecimento,
com nossos medos comuns, nossas brigas homéricas e um ciúme inimaginável do nada...O
menor e mais afetado por nosso legado, minha irma tão diferente, que eu imaginava sempre
que eu tinha outro irmão gêmeo que me compreendesse. E tudo reforçado pelo meu amor
platônico por Hayley Mills (hoje com 68 anos) em um filme da Disney em que ela faz o papel
de duas gêmeas separadas no divórcio dos pais...
Estas eram as minhas referências, em meus passeios de bicicleta a cidade universitária, ou ao
Butantã (em pleno jogo do Brasil com Portugal na copa de 66, desastre total e incrédulo) ou ao
Zoológico (como se poderia pedalar tanto¿) ... Ou na memória de ouvir no rádio a transmissão
da final da copa de 62, em uma festa de aniversário de um colega. E os nossos pais sem
dinheiro e sem títulos, conseguiam criar os filhos de forma relativamente homogênea, sem
drogas, sem bebidas, sem grandes loucuras. E sempre foram a minha referência maior, por
que sempre estiveram presentes. E hoje eu fico pensando quem são as referências do meu
filho... Ou quem foram...
E um vazio se faz presente, uma sensação de culpa e abandono, e não consigo entender como
deu certo...Acho que foi por causa de uma outra família que agora e minha. Ou foi por que o
mundo sempre se repete, e acaba girando na direção certa...
( um dia de ressaca pós copa do mundo ).
Comments