Pediatra analisa como regras educativas, e não opressivas, constituem um elemento inescapável para crianças e adolescentes se desenvolverem
Por Mauro Fisberg*
Atualizado em 10 Maio 2024, 08h40 - Publicado em 12 out 2023, 07h25
Assistindo a um ensaio da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), rapidamente me passou pela cabeça uma imagem de controle e falta de controle, limites e possibilidades. Imagine quase 80 instrumentistas e instrumentos, diferentes entre si, com sons absolutamente distintos, metais, sopros, arcos, percussão, cordas… E apresentando uma loucura de combinações de ruídos. E, de repente, a um levantar de mão do maestro, nasce uma ordem, e os músicos seguem um ritmo síncrono, de idas e vindas, correndo pela partitura como se fossem um único ser.
E o que era descontrole, o que era individualidade, sob a ação de guias e limitadores (o maestro e as partituras), torna-se uma música soberba, vibrante, harmônica e saltitante, que sobe e desce, flutua e adensa, em uma explosão suave ou destrutiva.
Mas o que isso teria a ver com a nossa realidade diária e a educação dos nossos filhos? Ora, muitos já relacionaram nosso corpo a uma orquestra, que, sob a batuta cerebral, movimenta inúmeros órgãos, tecidos, contrações e movimentos que nos permitem falar, sentir, sofrer, caminhar…
Algumas centrais moduladoras do organismo regulam e permitem que todo o restante funcione em harmonia, estimulando algumas partes enquanto outras são suprimidas ou atenuadas. Se você estica um lado, o outro provavelmente se retrai. E o equilíbrio fica mantido.
A falta de controle resultaria num caos e provavelmente ruiríamos em segundos. Se não houvesse limites, teríamos dores, teríamos rompimentos em juntas, teríamos doenças… Não creio que tenhamos um único maestro, mas inúmeras células funcionando e coordenando o corpo humano. Mas há uma meta única a ser alcançada.
Não estou falando nenhuma novidade e provavelmente você já leu coisas muito parecidas e mais bem escritas sobre o assunto. Mas a reflexão é necessária quando pensamos em nossos filhos. Eles precisam de espaço, mas também de limites. Limite é, nesse caso, orientação e cuidado.
Sem ele, crianças atravessariam ruas sem nos dar as mãos ou sem olhar para os lados, colocariam as mãos nas tomadas, comeriam lixo e fariam o que quisessem, sem qualquer compromisso. Adeus, escola! Adeus, almoço! Adeus, banho! E, talvez, mil acidentes, alguns deles potencialmente fatais.
Nossos filhos crescem e aprendem sob a nossa supervisão. Se somos permissivos demais e não colocamos limites, nunca chegaremos ao conforto da segurança. Se somos rígidos em excesso, não teremos exploração nem veremos inovação. E, se não nos interessarmos a respeito, que oportunidades daremos a eles lá na frente?
A falta de limite na juventude
Nos últimos dias, fomos bombardeados por algumas demonstrações incríveis de falta de controle de nossos jovens. Em redes sociais, vídeos e fotos dos trotes absurdos de escolas de medicina em competição desportiva. Alunos cruzam as quadras, pelados ou com roupas pelas pernas, mostrando suas formas indesejadas no momento.
Sim, isso sempre existiu, e, no meu período de centro acadêmico na Escola Paulista de Medicina, foi filmado um clássico da pornochanchada, com o nome fatídico de O Trote dos Sádicos, com nomes importantes do cinema nacional. Cenas foram gravadas nos pátios e nas ruas da Vila Clementino, onde fica a faculdade na capital paulista.
Apesar de sempre ter sido associado ao ritmo de passagem e aceitação, este movimento claramente não agradava a suas vítimas, que, obrigadas a aceitar regras, sofriam para poder ser aceitas em sua vida acadêmica futura. Eu claramente lembro que a experiência de chegada na universidade trazia consigo a sensação de novidade, mas também de medo ao ouvir o rugido dos veteranos.
Foi bom? Não acho. E vítimas sempre ocorreram. Assédio (ninguém nem falava essa palavra ainda), violência, embriaguez forçada, aguentar tintas nocivas no corpo, destruição de óculos e humilhação contínua. Nada diferente dos ritos de passagem das universidades americanas e suas fraternidades.
O fenômeno se perpetua e, claramente, dá sinais de uma falta generalizada de controle. Se não obedecermos a um semáforo, o trânsito vira caos e podem ocorrer acidentes. Se houver um número gigantesco de sinais em cada esquina, o trânsito também para.
Não temos controle quando nos relacionamos nas redes sociais, e você pode escrever ou divulgar a maior besteira da história e ela irá circular. Mas essas mesmas redes podem vetar um post sobre aleitamento materno, simplesmente por uma foto com um bebê mamando no peito.
Talvez seja importante pensarmos que alguma forma de controle é essencial em comunidades e regimes democráticos, o que é completamente diferente de se viver sob a vigência de um autoritarismo.
Nossos filhos precisam ser orientados para entender o que pode e o que não é aceitável em diferentes ambientes. Para que não aceitem doces de estranhos, para que não comam as maçãs de bruxas ou bondosas senhoras, para que respeitem os mais velhos, para que aceitem diferenças…
Que formemos filhos que saibam o seu lugar, mesmo que seja longe daqui. Que eles possam ser aceitos pelo que são e não necessariamente pelo que são obrigados a fazer para serem parte de algo. Que o controle seja educativo sem ser opressivo, que o limite seja sinal de segurança. Que eles saibam dizer não – e que o sim seja sempre uma alegria e não necessariamente uma certeza.
* Mauro Fisberg é pediatra e nutrólogo, coordenador do CENDA – Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/ Sabará Hospital Infantil e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Fonte: Letra de Médico
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