por Patricia Julianelli
Sem defesa Em época de terrorismo nutricional, a condenação de inocentes é parte do jogo. E o glúten é o mártir da vez
Ele jurou inocência. Clamou por justiça, por um julgamento imparcial, baseado em fatos científicos e não em modismos. Em vão. O júri estava decidido a pedir pena máxima ao réu. E assim pôr fim ao demônio que vivia dentro daquelas almas aflitas: a gula. Bastaram alguns depoimentos virtuais, pouco fundamentados, para que a opinião pública se virasse contra ele e o júri popular fosse formado. A lista de acusações que recaíam sobre o glúten parecia não ter fim. Inflamação, problemas intestinais, compulsão alimentar, acúmulo de gordura. Crimes sem perdão numa sociedade obcecada pela boa forma, cada vez mais desnorteada diante de tantas ameaças. Já provas e evidências eram escassas e contraditórias. O próprio retrato falado do glúten não teria valor algum em um julgamento imparcial. Mas bastou o relato de algumas supostas vítimas para transformar um cidadão de bem em criminoso implacável. Proteína presente em trigo, aveia, centeio, cevada e malte, o glúten sempre gozou de boa reputação. Era íntegro, acima de qualquer suspeita. Com muita fibra, sempre trabalhou a favor dos intestinos alheios, contribuiu para a sensação de saciedade. Até a gordura abdominal e os índices de colesterol ele ajudou a reduzir. Mas o jogo se invertera e ele estava no banco dos réus. Ouvindo acusação atrás de acusação, sem chance real de defesa. A falta de preparo do júri era gritante. Poucos ali conheciam a fundo o réu. Nem sequer levantaram a hipótese de sua inocência perante a imensa maioria da população — que na verdade vinha sofrendo para retirá-lo de suas dietas. Claramente o júri havia sido contagiado pelo clamor popular por justiça, pelos gritos do lado de fora do tribunal. “Satanás, diabo!” O glúten era uma real ameaça. A silhueta de todos corria perigo, era preciso detê-lo. A defesa ainda tentou amenizar a pena. A estratégia era focar nas poucas vítimas confirmadas: os celíacos, portadores de uma doença genética, com intolerância permanente ao glúten. E assim evitar a condenação por um crime hediondo, a epidemia mundial da obesidade. Chamou a atenção do júri para o provável culpado: o excesso de farinha e açúcar, cocaínas dos dias atuais. Excesso esse responsável por transformar pessoas saudáveis em zumbis em busca de mais alimento. “Será que os supostos beneficiados pela eliminação do glúten da dieta não teriam, na verdade, se beneficiado da inclusão de outros grãos integrais, legumes e vegetais no cardápio e da retirada dos alimentos processados à base de farinha de trigo?” Pães, massas, doces, esses sim seriam os verdadeiros suspeitos, clamou a defesa. Mas bastou um dedo em riste — “Foi ele, foi ele, eu não tenho dúvida de que o glúten fez a diferença!” — para que a multidão exigisse a condenação sumária do réu. Ninguém na sala questionou os interesses escusos por trás de uma condenação — extremamente favorável a um mercado que movimenta bilhões. Nem mesmo o envolvimento de um dos membros do júri com a alta cúpula das empresas Gluten Free Forever invalidou o julgamento. O glúten aceitou o veredito em silêncio. Para alívio de todos os presentes, que encontravam naquela sentença a validação de suas escolhas. Meses, anos de privação. Verdadeiras fortunas gastas na seção “sem glúten” do mercado. Ausências em compromissos sociais. Ao glúten, só restava a resignação. Sabia que em época de terrorismo nutricional a condenação de eventuais inocentes era parte do jogo. E que logo os holofotes mudariam de lugar; assim que a fome por soluções milagrosas elegesse um novo mártir. Num dia um nutriente está no céu, no outro, no inferno. Ninguém estava a salvo, nem mesmo a quinoa. No fundo da sala, o olhar resignado do glúten encontra cumplicidade no da lactose. Ela sabia: poderia ser ela naquele banco dos réus.
Patricia jUlianelli é jornalista e amante da comida saudável e gostosa. Tem na mesa do escritório uma maçã e, na gaveta, um bombom. patricia.julianelli@abril.com.br
[ julho | 2014 ] Runner’s World 19
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